SER REFERÊNCIA: A ancestralidade como caminho!
Por: Mestra Brisa e mestre Jean Pangolin
Há tempos venho pensando na difícil e complexa tarefa de ser referência em capoeira. Referencia de quê, ou seja, a serviço de que capoeira esta referência se presta? Quais seriam os sinais para reconhecer uma referência estruturada na capoeira dos mais antigos/as mestres/as desta arte? Qual a importância e as implicações em ser uma boa referência? Estas, dentre outras questões, estaremos tratando no decorrer deste texto.
No dicionário online a palavra Referência, do latim referentia, tem como um dos seus significados o "Conjunto de qualidades ou características tomado como modelo". Na capoeira, não é diferente, a referência lança-se como um guia, alguém que angariou conhecimentos que fundamentam esta arte.
Desde quando entrei na capoeira, até os dias atuais, sempre escutei os mais antigos falarem: "Menina, tem que seguir os mais antigos!", "Me diga quem é teu/tua mestre/a?, "Calça de homem, não dá em menino", ou ditos que sempre anunciam a reverência ao mais antigo para ensinar os caminhos.
Mas, qualquer antigo é boa referência? Digo isso, pois existem diversos comportamentos humanos das gerações passadas, que por uma compreensão mais amadurecida, e/ou uma transformação social vigente, já não são mais cabíveis na atualidade, tais como o autoritarismo no processo pedagógico, ou o uso de bebidas alcoólicas antes de adentrar o universo da roda, ou até o uso da figura mítica do mestre para violar intimidades dos discípulos. Enfim, nem tudo que é velho, é boa referência, ainda que possa estar dentro de parte do comportamento ancestral.
Logo acima, provocamos a indagação sobre os sinais para reconhecer uma referência estruturada na capoeira dos mais antigos mestres e mestras desta arte. Neste sentido, um primeiro passo é filtrar comportamentos humanos considerando os princípios de uma cosmovisão africana "abrasileirada", estruturada na ancestralidade, memória, "aprender fazendo", circularidade, oralidade, cooperativismo, musicalidade, corporeidade e axé, sendo que, todos estes princípios, devem ser adequados as necessidades dos dias atuais, ressignificando-os por uma funcionalidade a serviço do coletivo.
Pensando em exemplos no cotidiano da arte, podemos analisar a pertinência e referência de um antigo quando ele é a expressão viva dos seus ancestrais... Quando carrega dentro de sua oralidade as memórias da capoeira, seus causos, contos vividos na perigosa lida nas rodas de rua ou festa de largo, ou seja, ele É a própria capoeira... Quando no cantar, no tocar, na condução de uma roda, a antiga mestra revela toda a sabedoria oriunda do seu velho e sábio fazer, sendo a expressão viva de sua comunidade!... Quando, por fim, o antigo comunica a mudança ritualística da dinâmica de jogo sem emitir uma única palavra, utilizando apenas o berimbau como signo da conversa entre os capoeiras da roda, e o melhor... é por todos compreendido, confirmando que aquele lugar TEM AXÉ!
Na certeza de que somos o somatório das experiências vividas com todos os indivíduos e coisas que nos relacionamos, paira a dúvida... É possível ter uma única referência? Qual a diferença entre ter uma referência e lançar-se a repetir um padrão? .... Talvez, num delírio platônico seja necessário um equilibrar-se na corda bamba de fio de seda, que, de tão tênue, nos convoca a um constante movimento em favor da multiplicidade de inspirações que nos remetem a constituir nossa referência em capoeira, ou seja, seremos sempre fruto do contexto em que fomos forjados na cena cultural do fazer "capoeirano".
Seria simples dizer que minha referência na cantiga é Waldemar da Paixão, mas isso seria uma tremenda injustiça com mestre Ezequiel, mestre Paulo dos Anjos, mestre Bigodinho e tantos outros que compõem o conjunto daquilo que chamo de minha referência musical... Seria tão fácil dizer que no jogo minha referência é mestre Durval Ferro Velho, mas isso seria injusto com os mestres Camisa Roxa, Joel, Mário Bom Cabrito, dentre outros. Por isso, me percebo em alguns momentos, acatando a fluidez e o flerte com as múltiplas referências que adentram a composição da minha capoeira.
Por fim, dizer o motivo da importância de termos referências em capoeira... É simples... É preciso mantermos VIVO o legado ancestral, e isso se dá quando nos colocamos como elo referencial entre o antigo e o novo, reforçando a ideia de "velho" no novo e "novo" no velho.
Iê! viva os antigos, camará!
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